Você nunca mais vai ficar sozinha

# 02- VOCÊ NUNCA MAIS VAI FICAR SOZINHA
Autor(a): Tati Bernardi
Editora: Companhia das Letras – Gênero: Ficção brasileira
Edição/Ano: 1. Ed., 2020, 137 págs.
“Qualquer coisa, chamo minha mãe, eu pensava com cinco anos de idade. Com doze anos. Com vinte anos. Com trinta e cinco anos. Qualquer coisa, ela vem correndo. Ela vem da sala pro quarto, da cidade para a praia. Ela pega um táxi, um ônibus. Ela pega um avião e chega em uma hora, doze horas. (...)”
Qualquer coisa, eu chamo minha mãe...
Qualquer tristeza, doença, decepção, aperto, dúvida, saudades de um colo...eu chamo minha mãe.
Em casa sempre foi assim. Mãe sempre foi porto seguro, “salvadora da pátria”, olhos e ouvidos atentos para as alegrias ou lamentações.
Cresci assim. E eu, enquanto adolescente, depois jovem e até recém adulta, acreditava que mãe era tudo igual.
Eu, inocentemente, pensava que minha mãe era apenas mais uma mãe.
Mas, bastou ser mãe para compreender que não somos todas iguais. Sentimos diferente, temos desejos que podem não se assemelhar em nada com o de outras mães, precisamos ficar sozinhas e longe de tudo e de todos, somos cobradas para sermos mártires e nunca estarmos cansadas. Só que a vida é bem mais real do que pode parecer e para algumas de nós nada funciona como o “programado”.
Nesse livro da Tati Bernardi, há três grandes relações, o relacionamento da Karine (personagem principal) com a própria mãe, com a gestação da própria filha e com ela mesma.
Karine, durante a rotina dos exames pré-nupciais, questiona tudo o que está passando pela futura filha e ao mesmo tempo relembra os traumas, obsessões, medos e neuroses vivenciados por ela no decorrer dos seus trinta e cinco anos.
Com humor ácido, que demonstra a sagacidade da autora em lidar com situações trágicas, ela nos mostrar como é difícil ser mãe, considerando toda a culpa que nasce imediatamente com a gravidez, além de tudo o mais que a sociedade quer nos impor como sendo correto e adequado nessa fase.
Por outro lado, também demonstra como pode ser difícil ser filha no meio de uma relação conturbada. Ter que lidar com todas as questões mal resolvidas da mãe, com a culpa de verdadeiramente cortar o cordão umbilical, com o desejo de não querer ser igual a ela e ao mesmo tempo de querer tê-la sempre por perto.
“Minha mãe me perguntou como faz para me perdoar de tantas coisas. (...) O dia que taquei a bolsa dela com toda força na parede porque não suportava mais seu jogo “sou esperta o bastante pra te fazer sentir uma merda mas se você me disser que eu faço isso vou passar mal e sou apenas uma velha e você é cruel” - ela me deu um tapa no braço, sua mão ficou desenhada na minha pele.”
Você nunca mais vai ficar sozinha foi o modo da autora descrever toda a complexidade da relação de ser mãe e filha, e de como ela pode ser determinante para as escolhas dos caminhos.
Por meio de doses de humor e cinismo, Tati Bernardi, não se limita a condenar as agruras da gestação, ela também consegue antecipar o amor desmesurado de uma filha prestes a se tornar mãe.
"E você ouviu minha risada e parou de chorar. Então não senti a maior emoção da minha vida, muito menos a maior felicidade de todos os tempos, mas tive certeza absoluta de que eu jamais vou te deixar."
Sim, a autora nos leva a refletir que nunca mais ficar sozinha pode ser ao mesmo tempo uma benção e uma condenação.
Teve coragem de desmistificar a gestação, a maternidade e tratou de forma nua e crua de que estar grávida, ser mãe e ser filha nem sempre é uma maravilha.
É, esse livro não é para todos. Ele trata dessas questões com um humor escrachado e creio que exige uma certa experiência de vida para que a toda a sinceridade da Karine seja mais compreensível.
Voltando ao início do texto, a maternidade e a maturidade serviram para muitas coisas e uma delas foi entender que minha mãe não é mais uma mãe, ela é única. E é muito confortante saber que eu estou nela e ela em mim.
Tenho uma sorte danada.
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